“Nos textos de Walter Benjamin sobre a poesia de Baudelaire (Benjamin, 1979) surge a figura do passeante, uma personagem que na sua relação de proximidade/distância com o meio envolvente se aproxima do estrangeiro de Simmel, e que, tal como este, é pensado em conjunto com a figura da multidão: o passeante ama a solidão, mas quer vive-la no meio de desconhecidos. Em 1982, data da publicação da sua obra póstuma e inacabada Paris, capitale du XIX siècle, foi possível reencontrar, em formulações mais complexas e sofisticadas o tema da relação entre a cidade, os seus habitantes e a cultura que lhe é específica.
(…)
A possibilidade de olhar para a cultura material de forma a encontrar nela elementos organizadores da cultura de uma época corresponde a uma das vertentes de trabalho da Antropologia do Espaço. A publicação da obra de Benjamin Paris, capitale du XIX siècle revelou-se, tal como havia acontecido com os textos de Simmel, inspiradora para os autores cujas preocupações se situam nessa linha de trabalho. Benjamin concedeu à arquitectura um papel muito especial: o de «testemunha da mitologia latente de uma determinada época». Elegeu as galerias (ruas comerciais cobertas por estruturas de vidro e ferro) como a arquitectura mais importante do século XIX e, por isso, considerou-as reveladoras do espírito da época. No seguimento do trabalho de Simmel, procurou a especificidade do espaço da cidade e tentou associá-la a um estilo de vida. Encontrou-a no carácter transitório, efémero e movente das práticas sociais que percorrem as galerias (e aqui reaparece a personagem do passeante), no papel sedutor e mágico da mercadoria exposta (tornada mais atraente pela recente iluminação a gás), na moda como afirmação moderna do mito do eterno retorno.
Paris, capitale du XIX siècle deixa ainda proposta de trabalho estimulantes, relativas às formas possíveis de abordar — do ponto de vista da escrita — o espaço da cidade. O texto na sua forma fragmentada, acaba por corresponder ao olhar do passeante e, por isso, àquilo que será uma escrita possível para dar conta do olhar dos habitantes das cidades contemporâneas. Para lá da questão da fragmentação do texto, podemos isolar uma outra – a da escala da abordagem – que se reveste de implicações metodológicas importantes: a mobilidade do sujeito narrador conduz a uma multiplicação de abordagem, saltando da escala global para escalas mais reduzidas e acabando na valorização epistemológica do pormenor:

Descobrir na analise do pequeno momento singular o cristal do acontecimento total. (Benjamin, 1989: 12)

SIVLANO, Filomena; Antropologia do Espaço. Lisboa, Assírio & Alvim, 2010

“O não-lugar será então um lugar que não é relacional, não é identitário e não é histórico. Materializa-se nas auto-estradas, nos aeroportos e nas grandes superfícies. O viajante — não o passeante de Benjamin e Baudelaire, que Auge classifica de «moderno», e que, ao contrário do viajante «sobremoderno», articula o espaço antigo e o espaço moderno num todo produtor de sentido — é a figura humana dessa nova configuração espacial. Viaja, solitário em espaços que não são nem dele nem dos outros, mas onde, Auge concede, se sente livre. De quê? Dos constrangimentos da relação com os outros e da identificação com o grupo.
Mas em Usem des autres, livro que se preocupa mais com a questão, central para a antropologia e crucial para a humanidade, da relação com a alteridade, Auge avança com materializações menos eufóricas do conceito de não-lugar:

Campos de refugiados, campos de trânsito, grandes espaços antes concebidos para a promoção do mundo operário e tornados insensivelmente o espaço residual onde se encontram os sem-abrigo e sem-emprego de origens diversas: por toda a parte espaços inqualificáveis, em termos de lugar, acolhem, em principio provisoriamente, aqueles que as necessidades do emprego, do desemprego, da miséria, da guerra ou da intolerância constrangem à expatriação, à urbanização do pobre ou ao encarceramento. (Auge, 1994:169)

Os não-lugares revelam uma nova forma de viver o mundo, mas aparecem sempre em relação com espaços que parecem estar mais próximos da tradicional noção de lugar. Por definição, um viajante é uma pessoa em trânsito. Quando pára, fica nalgum lugar. Compreender o espaço contemporâneo passa também por estudar os mecanismos de relação entre lugares e não-lugares.

Na realidade concreta do mundo de hoje, os lugares e os espaços, os lugares e os não-lugares emaranham-se, interpenetram-se. A possibilidade do não-lugar nunca está ausente seja de que lugar for. O regresso ao lugar é o recurso de quem frequenta os não-lugares (e sonha por exemplo com uma residência secundária enraizada nas profundidades de um solo natal), (Auge, 1992:90)”

SIVLANO, Filomena; Antropologia do Espaço. Lisboa, Assírio & Alvim, 2010

“Em Non-Lieuxn, Augé começa por levantar a questão do objecto de estudo da antropologia contemporânea. Dito de outro modo, questiona a capacidade de a antropologia observar, interpretar e analisar a cultura e a sociedade actuais. O desafio é global, porque diz respeito à definição de um novo objecto de investigação:

A questão das condições de realização de uma antropologia da contemporaneidade deve ser deslocada do método para o objecto. (Augé, 2005:374)

Qual é esse novo objecto? Augé começa por orientar a observação:

Teremos de prestar atenção às mudanças que afectaram as grandes categorias através das quais os homens pensa a sua identidade e as suas relações recíprocas. (Idem: 37)

Passa depois a sistematizar as suas ideias, em torno da noção de sobremodernidade. Relaciona-a com a de pós-modernidade, umas vezes considerando-as como as duas faces de uma mesma moeda, outras colocando-as em oposição. Em Le sens des autres, publicado em 1994, dois ano depois de Non-Lieux, afirma que:

a sobremodernidade aparece quando a história se torna actualidade, o espaço imagem e o indivíduo olhar. Por oposição à uma pós-modemidade, concebida como adição arbitrária de traços aleatórios, a sobremodernidade dependeria de três figuras de excesso. (Augé, 1994:163)

Excesso de tempo, de espaço e de individualismo. Excesso de tempo, porque a história se acelerou de tal forma que tudo se torna acontecimento, ou, vistas as coisas de outro ponto de vista, por haver tantos acontecimentos já nada é acontecimento. Organizar o mundo a partir da categoria tempo deixou por isso de fazer sentido. Excesso de espaço, porque graças à mobilidade (de pessoas, bens, informações e sobretudo de imagens) sentimo-nos implicados no que se passa nos pontos mais remotos.
Nesse sentido, Augé defende que o sentimento de excesso se encontra, paradoxalmente, associado a um “encolhimento”do planeta. Excesso de individualismo, por um lado, porque o actual mundo mediático contribui para o enfraquecimento das referências colectivas e suscita uma individualização dos procedimentos e, por outro, porque as singularidades (dos objectos, dos grupos de pertença) organizam cada vez mais a nossa relação com o mundo.”

SIVLANO, Filomena; Antropologia do Espaço. Lisboa, Assírio & Alvim, 2010

A obra de georg simmel (1858/1918), importante referência no campo da sociologia do século XX, é marcada pelo modo inovador como a realidade então existente é lida e interpreta, através de uma visão estimulante e entusiasta da cidade. Esta forma de compreender o mundo emergente levou Simmel a formular ideias que ainda hoje são tidas como respostas válidas para algumas das questões da contemporaneidade.

Este pequeno texto revela-se assim um importante objecto para descodificar e compreender uma das figuras que marcam e caracterizam (através do seu anonimato) o espaço urbano da cidade contemporânea: o “estrangeiro”.

“A noção de mobilidade aparece, no pensamento de Símmel, sob duas formas diversas. A primeira associa-se à figura do estrangeiro. Num texto de 1908, Simmel desenvolve algumas ideias que permitem uma conceptualização conjunta do espaço e da cultura:

Se a errância é a libertação relativa a todos os pontos dados no espaço e se opõe conceptualmente ao facto de se estar fixado num ponto, a forma sociológica do estrangeiro apresenta-se como a unidade dessas duas características. (Simmel, 1990b 53).

Mais à frente, no mesmo texto, a definição da figma do estrangeiro vai articular, espacial e culturalmente, a proximidade e a distância:

Assim, o estrangeiro de que falamos aqui não é essa personagem que foi frequentemente descrita no passado, o viajante que chega um dia e volta a partir no dia seguinte; é, antes, a pessoa chegada hoje e que ficará amanhã, o viajante potencial, de alguma forma: embora não tenha prosseguido o seu caminho, não abandonou completamente a liberdade de ir e vir. Está ligado a um grupo espacialmente determinado, ou a um grupo cujos limites evocam limites espaciais, mas a sua posição no grupo é essencialmente determinada pelo facto de ele não fazer parte desse grupo desde o início, de ele lhe ter introduzido características que não lhe são próprias e que não podem sê-lo.
A unidade da distância e da proximidade, presente em toda a humanidade, organiza-se aqui numa constelação cuja formula mais curta seria a seguinte: a distância no interior da relação significa que o próximo é longínquo, mas o próprio facto da alteridade significa que o longínquo está próximo, (Idem: 53-54)

O estrangeiro, por definição, não tem raízes — entendendo-se este termo, não só no seu sentido material, ma também no seu sentido metafórico, como existência substancial enraizada em qualquer parte, se não é no espaço, ao menos num ponto do meio social […] Reduzido ao comércio intermediário, e frequentemente à pura finança, como se esta fosse a sua forma sublimada, ele adquire a sua característica especifica: a mobilidade. Se a mobilidade se introduz num grupo fichado, ela arrasta com ela essa síntese de proximidade e de distancia que constitui a posição formal do estrangeiro, (Idem: 55)

A forma particular de o estrangeiro articular a proximidade e a distância é organizadora de uma cultura singular, que, segundo Simmel, é indissociável do meio onde se desenvolve: a cidade, pensada a partir das características que a distinguem dos outros meios. Num texto denominado «A Metrópole e a Vida do Espírito», de 1903, a multidão, outra figura do pensamento de Simmel, surge associada ao indivíduo (que por vezes será de facto um estrangeiro, mas que na cidade assume sempre algumas das características daquele), ao possível sofrimento, mas, sobretudo, à noção de liberdade. De alguma forma, podemos dizer que encontramos nesse texto a formulação de uma concepção ética da cidade.

A importância de que se reveste, para a independência do indivíduo, a atitude de reserva e de indiferença, bem como as condições mentais da vida dos grandes aglomerados, só é realmente apreciada nas densas multidões das metrópoles, em que o limitado espaço de movimento e a proximidade física dos indivíduos justificam de imediato o seu distanciamento mental. É apenas por oposição a esta liberdade que, naturalmente, em determinadas condições, nunca nos sentimos tão solitários e isolados como no bulício das grandes cidades. Porque aqui, como noutros lugares, não é de modo algum necessário que a liberdade dos indivíduos se reflicta na sua vida emocional como experiência agradável (Simmd, 1997: 38)

SIVLANO, Filomena; Antropologia do Espaço. Lisboa, Assírio & Alvim, 2010

Neste artigo, escrito de um modo “didático” e claro, Fernando Dias elabora uma síntese do pensamento do arquitecto e pensador Paulo Virilio, fornecendo aos leitores “ferramentas” para uma possível reflexão sobre algumas das principais questões da vida em sociedade. Para tal, o professor Fernando Dias recorre, em alguns pontos do texto, à comparação entre as teorias de Virilio e as de outros pensadores contemporâneos (Jean Baudrillard, Octavio Paz, Edward T. Hall).

O conceito de Virilio que pretendo aqui sublinhar é o de dromologia, etimologicamente proveniente do vocábulo grego “dromos” (acção de correr). A dromologia assenta no pressuposto de que os acontecimentos estão directamente relacionados com a sua velocidade de ocorrência, podendo esta mesma velocidade provocar diferentes alterações na estrutura do acontecimento.

Este conceito surgiu pela primeira vez no segundo livro de Virilio, Vittesse et Politique (1977), e o autor confere-lhe um sentido pejorativo, podendo esta velocidade ser interpretada como algo “poluidora”.

“… Até ao advento da Revolução dos transportes na cultura industrial, a viagem era experiência e conhecimento, que não se decidia apenas pelos pólos de partida (origem) e chegada (destino), para se determinar em todo um percurso como história intrometida na espessura da demora dessa mesma viagem. O percurso era duração, ou mesmo espera, por vezes aceitando desvios para se estender em busca dessa experiência e história da viagem.
(…)
O século XIX industrial e colonial desenvolveu as grandes viagens, numa deslocação que, cada vez mais, procurava superar o tempo local e histórico. Devorando o percurso, procurava encurtar a distância entre a partida e chegada, fazendo destes pólos as referências determinantes e absorventes. A aceleração encurtava o tempo e devorava o território. As cidades industriais (metrópoles) tornavam-se, neste sentido, pontos maior de convergência, anulando os territórios entre si. O caminho-de-ferro ou, depois, a auto-estrada, foram exemplos de um progresso assente na velocidade que anulou o percurso. Quanto mais se acelerava, menos o território mediador fornecia relatos para contar.
(…)
A viagem assenta na extensão do espaço e do tempo, do território que se estende como solo aderente e localizador, e dos ciclos do tempo como reguladores da demora implicada na sua travessia. Ou seja, a viagem exige a terra, a dimensão planetária como sua reguladora e macro-referência.
(…)
Por seu lado, a velocidade fornece a consciência da relatividade, tal como a teoria da relatividade consagrou a era industrial dos transportes ao mesmo tempo que precedeu a sua passagem. A viagem é sucessão e relação. Ligando pontos ela assume-se na diferença entre partida e chegada. Esta relatividade da velocidade desenvolve-se até ao seu limite, a velocidade da luz, e com esta a velocidade torna-se absoluta, instantânea e global: sem duração nem território, a velocidade da luz é a consagração da velocidade: é a velocidade limite da morte dos trajectos com partida, duração e chegada.
Quanto mais aumentamos a velocidade, mais precisamos da distância óptica para recuperarmos a paisagem num horizonte cada vez mais distante até o perdermos no que é também a perda do lugar geográfico. Passamos a ter o mundo inteiro (já não o local) que é também um mundo reduzido, que olhamos como objecto ou imagem e já não como lugar. (…) A velocidade tende para o zero para a menor duração das coisas, sejam elas objectos, memórias, territórios ou as suas relações.
(…)
A profundidade do trajecto, com partida, deslocação (viagem) e chegada, que vai de «um» (aqui) para «outro» (ali) lugar, implicando narrativas e conhecimentos, é devorada pela hiperconcentração do tempo da velocidade da luz, que reduz a «nada» todos os trajectos para apenas restar o estar-lá. O aqui e agora da presença, como deslocação (que é localização «no trajecto») de um corpo vivo é substituído por esse «lugar nenhum» da intermitência do corpo virtual, verificando-se uma perda do sujeito e do objecto, uma atrofia do trajecto e uma «desagregação das condições da experiência sensível». A dromos (corrida) da modernidade culmina na dromologia (poluição da velocidade) da pós-modernidade.”

Excerto retirado do artigo “A dromologia de Paulo Virilio e a Arquitectura contemporânea: reflexões sobre a crise da Polis e da Domus”, escrito pelo pelo professor Fernando Paulo Rosa Dias para o sétimo volume da revista Arte e Teoria.

“Uma vez afirmada a variedade das relações que constituem os lugares, Foucault passa a descrever os lugares que lhe interessa estudar e têm a propriedade de se encontrarem em relação com rodos ou outros, ao mesmo tempo que suspendem, neutralizam e invertem o conjunto de relações que esses outros espaços manifestam.
Qs primeiros são as utopias, espaços que não têm lugar real:

São os espaços que mantém com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia directa ou invertida. É a própria sociedade perfeccionada ou é o inverso da sociedade mas, de qualquer forma, essas utopias são espaços que são, fundamentalmente, essencialmente irreais (Foucault, 1984:6).

Os segundos são utopias realizadas. Espaços em que os outros espaços existentes no interior da cultura a que pertencem são representados, contestados e invertidos.
Por oposição às utopias, as heterotopias são lugares que estão fora de todos os lugares, mas que no entanto são localizáveis. Têm características comuns que Foucault, numa tentativa de isolar o seu objecto de trabalho, descreve ao longo do texto.
O primeiro principio anunciado diz respeito à universalidade das heterotopias: todas as sociedades as possuem, embora com formas diferentes. As sociedades ditas primitivas possuem as heterotopias de crise.

Há lugares privilegiados ou sagrados ou interditos, reservados aos indivíduos que se encontram, em relação à sociedade, e ao meio humano em que vivem, em estado de crise. Os adolescentes, as mulheres menstruadas, as mulheres em parto, os velhos, etc (Foucault, 1984: 7).

Na nossa sociedade as heterotopias de crise têm desaparecido mas ainda aparecem lugares que manifestam as suas características: o colégio, o serviço militar, os hotéis das viagens de núpcias, eram (são) lugares que representaram o papel das heterotopias de crise. Foram substituídas pelas heterotopias de desvio, os lugares onde hoje se colocam os indivíduos com um comportamento fora das normas exigidas. Casas de repouso, hospitais psiquiátricos, prisões e lares de terceira idade. A obra Surveiller et Punir (Foucault, 1975) vai justamente fazer a arqueologia da prisão e mostrar que não se trata de um espaço isolado, mas antes de um espaço que só pode ser compreendido quando pensado em conjunto com toda uma série de lugares de encarceramento (casas de correcção, asilos, instituições de caridade).

(…)

O segundo princípio afirma que uma mesma sociedade pode, ao longo do tempo, fazer funcionar uma heterotopia de formas diferentes. O cemitério é apresentado como exemplo. Até ao fim do século XVIII, situava-se no coração das povoações, ao lado da igreja. A partir do século XIX, sai da cidade para ocupar espaços periféricos. Com a denominada dessacralização da sociedade, o cemitério deixa de constituir o “vento sagrado e imortal da cidade” para dar forma a uma “outra cidade”, exterior, mas com a qual cada família, por via do culto dos mortos, mantém relações. O terceiro princípio afirma que as heterotopias têm o poder de justapor, num só lugar real, vários espaços que são por si só incompatíveis. Ê o caso do teatro, do cinema e do jardim.
Quarto princípio: as heterotopias estão frequentemente associadas a cortes do tempo. Aquilo a que por simetria Foucault chama de heterocronias. O cemitério é um bom exemplo. Mas há ainda, no que diz respeito à acumulação do tempo, os museus e as bibliotecas e, no que diz respeito à sua suspensão, os lugares de festa como as feiras e as aldeias de férias.
O quinto princípio refere-se ao duplo sistema de abertura e fechamento, que, por um lado, permite o seu isolamento mas que, por outro, as torna penetráveis. O motel americano, que abriga e esconde a sexualidade ilegal, é um exemplo revelador.
O último princípio refere-se à função das heterotopias. Numa primeira versão elas criam um espaço de ilusão que denuncia, como se ele fosse ainda mais ilusório, o espaço real, os espaços em que a vida real está confinada. Terá sido o caso dos bordéis. Na segunda versão, criam um outro espaço, real, tão perfeito, meticuloso e arranjado quanto o nosso é desordenado, improvisado e desarrumado. Terá sido por vezes o caso das colónias.
Para terminar, Foucault apresenta-nos o navio como sendo a heterotopia por excelência.”

SIVLANO, Filomena; Antropologia do Espaço. Lisboa, Assírio & Alvim, 2010

“.. Estas questões ganham mais pertinência se efectuarmos algumas relações com a proxémia, conceito da psicologia social, que articula relações do corpo próprio como espaço e o «outro». Segundo Edward T. Hall, a proxémia é uma «linguagem do espaço», uma «dimensão oculta» que permite uma regulação comportamental das distâncias que cada animal estabelece com os outros animais na posse do território, ou na sua protecção, na relação com membros da sua espécie ou de outra. É assim possível que as gazelas estejam à vista do leão nas savanas africanas, desde que as distâncias de defesa estejam respeitadas. A estratégia da caça do leão está na capacidade de invasão desse espaço de distância surpreendendo a gazela – implicando, portanto, também uma relação com o tempo. Se a proxémia é uma protecção que compreende uma relação entre distância e tempo, entende-se que a velocidade faz o tempo devorar o espaço aniquilando essa protecção e que a velocidade é poder. Nos homens esses comportamentos passam a variar segundo aspectos culturais e psicológicos, a partir dos quais se estabelecem relações de poder, de trocas simbólicas, materiais ou sexuais. Hall refere quatro distâncias: a íntima, a pessoal, a social e a pública.

A cidade industrial e a sua densidade populacional provocou uma agressão ao espaço da proxémia, esmagando as distâncias de relação entre os sujeitos, tal como o exemplo típico da proximidade íntima (sexual) que as horas-de-ponta nos transportes públicos provocam entre indivíduos que não se conhecem, mas exigindo a uma atitude mútua de passividade e incomunicabilidade, como se tivessem a uma distância respeitável — exemplo este em que se manifesta uma «distância íntima» numa relação que requeria uma «distância pública». Essa espécie de bolha invisível que envolve o indivíduo é aqui agredida, provocando uma perturbação que pode gerar desfuncionalidades (sobretudo comportamentais) nos indivíduos. As cidades de grande densidade populacional crescem perturbando esta necessidade de distâncias inter-individuais, aspectos que a arquitectura e o urbanismo deviam considerar. Num dos seus primeiros ensaios, Jean Baudrillard referia que, enquanto os objectos proliferam na produção excessiva da sociedade de consumo, o espaço tornou-se uma raridade e um dos luxos de consumo: «Não há direito ao espaço senão a partir do momento em que já não existe espaço para todos e em que o espaço e o silêncio constituem o privilégio de uns quantos, à custa dos outros». Este luxo acentua-se nas grandes cidades tornado-se, por isso, um sinal de poder e domínio acentuado. Manter a distância do outro tornou-se taxo e poder.”

Excerto retirado do artigo “A dromologia de Paulo Virilio e a Arquitectura contemporânea: reflexões sobre a crise da <polis> e da <domus>“, escrito pelo pelo professor Paulo Rosa Dias para o sétimo volume da revista Arte e Teoria.

“As ruas são, para mim, uma espécie de representação do inconsciente. E penso que o vazio do espaço nas minhas fotografias de rua tem a ver, no dizer de Walter Benjamin, com “os locais do crime”. Isto significa que as ruas e as cidades onde os homens viveram estão sempre presentes e que a sua história está ali legível. É como se os actores deixassem o palco durante meia hora ou meio dia, mas o espectáculo continuasse.”

Thomas Struth, New York, Coenlies Slip / Water Street North West – 1978/1987

Referências: CONTACTS (2009)_ William Klein

“Comecei a trabalhar em fotografia de uma maneira muito ingénua. E quanto mais fotografava, mais me apercebia que abordar temas íntimos ou pessoais não me interessavam, e que preferia exprimir-me sobre o mundo em que vivemos. O verdadeiro tema do meu trabalho é a história, ou seja, a relação entre a experiência vivida pessoal e a história colectiva, o modo como as pessoas vivem em comunidade. Daí surgiu o meu interesse pela cidade, fenómeno que diz respeito a cada um de nós.”

Thomas Struth, Shibuya Crossing, Tokyo – 1991

Referências: CONTACTS (2009)_ William Klein